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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Reinventora do amor

Considerada o marco principal da liberação feminina no Brasil, Leila Diniz (1945-1972) é tema de livro do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos

Popular estrela de telenovelas e filmes de sucesso nos anos 60, entre eles os cultuados “Todas as Mulheres do Mundo” e “Edu, Coração de Ouro”, ambos de Domingos de Oliveira, e “Fome de Amor”, de Nelson Pereira dos Santos, Leila tornou-se em definitivo um fenômeno nacional em 1969, após conceder ousada entrevista ao jornal alternativo “O Pasquim”. Em meio a outras inusitadas declarações, até então inéditas na boca de uma brasileira famosa, Leila afirmava poder “amar uma pessoa e ir para a cama com outra” e que “na minha caminha, um homem dorme algumas noites, mais nada”.

Em “Leila Diniz: uma Revolução na Praia”, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos emociona o leitor ao narrar, com indisfarçada admiração por sua biografada, aquilo que se pode considerar a sofrida saga de uma mulher corajosa que teve a audácia de ser “diferente”, em tempo de sombrios preconceitos fomentados por um regime assumidamente repressivo. Atacada pela direita, que a classificou de “imoral” e “vagabunda”, e pela esquerda (então assexuada), que achava coisa de “alienados” suas conversas públicas sobre sexualidade, a bela atriz manteve inalterada sua personalidade no campo amoroso e a maneira espontânea de entremear frases com palavrões.

Leila Roque Diniz nasceu no dia 25 de março de 1945, em Niterói, Rio de Janeiro, filha de um bancário comunista, preso no governo de Eurico Gaspar Dutra, e de uma professora de educação física. Ingressou no teatro ainda adolescente, exerceu o magistério por uns tempos e, segundo ela própria, perdeu a virgindade com plena convicção do que estava fazendo, “entre 15 e 16 anos”. Sua carreira como protagonista de televisão foi bruscamente interrompida quando a folhetinesca Janete Clair a vetou, explicitamente, para um papel em “Véu de Noiva”, alegando grosseiramente que, em novela de sua autoria, não havia lugar para uma atriz que “passa a impressão de ser puta”.

Uma mulher para o mundo

“Todas as Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira, traz a melhor interpretação de Leila Diniz no cinema. Foi considerado pelo crítico Maurício Gomes Leite “um dos melhores filmes feitos no Brasil - e o mais carioca de todos os tempos”. Mesmo hoje, quatro décadas depois, Ruy Castro não hesita em colocá-lo entre as quatro melhores produções cinematográficas nacionais. Na época do lançamento do filme, a onda era fazer produções tipo “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, com o objetivo de confrontar o discurso totalitarista da ditadura. Assim, uma bela celebração ao amor, sem quaisquer conotações políticas óbvias, só poderia ser literalmente denotada como uma abjeção alienante, na visão radical dos diretores do Cinema Novo. Hoje, com seu discurso hermético e alegórico, “Terra em Transe” parece algo datado, enquanto “Todas as Mulheres do Mundo” conserva um frescor estético e uma atualidade impressionantes.

Segundo Joaquim Ferreira dos Santos, nunca antes havia chegado ao cinema nacional um personagem com o perfil do interpretado ali por Leila Diniz, numa fuga aos estereótipos das fêmeas apresentados nas telas brasileiras. Entrava em cena a imagem da mulher “na dela”, tal sua intérprete, que carregava pílula anticoncepcional na bolsa, exigia o orgasmo nas relações sexuais, não corria atrás de casamento e fazia com seus parceiros o que eles passaram a vida inteira fazendo com elas.

O comportamento de Leila, como seria de esperar, escandalizou e enraiveceu os puritanos de plantão, sobretudo os censores da ditadura, e ela era odiada pelo então ministro Alfredo Buzaid, conhecido por seus posicionamentos esdruxulamente reacionários e radicais. Certa vez, quando Leila participava, na TV Tupi, do corpo de jurados do programa Flávio Cavalcanti, dois policiais estavam preparados para subir ao palco e entregar-lhe uma intimação, com o espetáculo sendo transmitido para todo o Brasil, e dizer-lhe ao vivo: “Dona Leila Diniz, a senhora queira nos acompanhar”.

Flávio Cavalcanti, que já fora advertido pelos militares que devia dispensar Leila do júri e se recusara a fazê-lo, percebeu a presença dos policiais, avisou a atriz em um intervalo comercial e esquematizou sua fuga. Quando o programa voltou ao ar, ela pediu licença ao apresentador para ir ao toalete, provocando gargalhadas do auditório, mas na verdade dirigiu-se a um veículo que a conduziria a um “exílio” na casa do próprio apresentador, em Petrópolis. Tido como reacionário de extrema direita, contumaz quebrador dos discos de Caetano Veloso, Flávio Cavalcanti foi capaz dessa ação extremamente digna e solidária, ele próprio se expondo à fúria dos militares e do ministro Buzaid, que rotulava Leila de “imoral e subversiva depravada”.

Definições de uma mulher

Após seu prematuro desaparecimento, Carlos Drummond de Andrade, o poeta-ícone nacional, escreveu no Jornal do Brasil: “Leila para sempre Diniz, feliz na lembrança gravada: moça que sem discurso nem requerimento soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão”. O cronista Rubem Braga, seu amigo e vizinho em Ipanema, comentou: “Sua ousadia chocou, mas ajudou a mudar a mulher brasileira. Sempre será citada pelos sociólogos de costumes. Leila Diniz foi um momento, foi uma etapa na História”.

Mas, vale ressaltar, vem da própria Leila Diniz, em seu diário pessoal redigido de forma primorosa, sua melhor e mais completa definição: “Talvez eu seja no fundo a mais ingênua das criaturas, a mais cristã e ideológica que se possa imaginar, Esperava do mundo uma sinceridade e uma honestidade clara e simples como a que eu pretendia e pretendo lhe dar, mas vi que não era assim e fiquei um pouco confusa. Acho que é preciso deseducar para se reestruturar. Para se chegar aos instintos verdadeiros dentro da gente, para se descobrir o ‘certo’ da gente. Quando se está livre de toda a capa de educação, de ‘boa educação’, de ‘direitinho’, das normas, dos preconceitos e de tudo o que é ensinado pra gente, pode-se ter uma visão muito mais aberta da vida e do mundo”.

Falecida aos 27 anos num desastre aéreo, de volta de um Festival de Cinema na Austrália, onde ganhou o prêmio de melhor atriz pela interpretação no filme “Mãos Vazias”, de Luís Carlos Lacerda, seu desaparecimento causou estrondosa comoção nacional. Hoje, Leila Diniz é um símbolo maior de uma vida pautada pela liberdade, na incessante luta contra os preconceitos, a intolerância e os falsos pudores de mentes travadas, sempre a postos na missão odiosa de obstruir e eliminar as autênticas sementes do amor e da felicidade.

LANÇAMENTO
"Leila Diniz: uma Revolução na Praia"

Joaquim ferreira dos Santos
R$ 39,90
280 páginas
2008
COMPANHIA DAS LETRAS

JOSÉ AUGUSTO LOPES
Repórter

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